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︎︎︎

AFONSO HENRIQUES NETO

MUSEU DA INCONFIDÊNCIA


Em Ouro Preto há um museu para os despojos mineiros.
Nos salões onde o tempo praticou tanto lodo
e diamante, nesses salões que foram calabouços
há milagres cochichando: Aleijadinho de névoa
reconstrói formas de sonho (teias centelhas suores petri cados no sono).
Em Ouro Preto, credo, museu de escuro sangue.

Tomás Gonzaga, punhado de pó: peregrina esperança.
A seu lado, sob a laje ora abstrata, Alvarenga
Peixoto murmura coisas de Incondências.
Cláudio Manuel volta a perseguir sanhas de sedição.
Em subterrâneos diálogos caminham estrelas:
bandeira intacta do Tiradentes.
Na outra sala, defronte à forca,
Maria Doroteia de Seixas recita sem lábios
pesadelos de Marília para Bárbara Heliodora.
E os dentes do sol a gravarem na pedra liberdade.
Em Ouro Preto, libertária lavra, um museu.

Marília que Gonzaga não fruiu
foi Juliana em Moçambique,
lha de contratador de escravos.
Tantos gestos, tanta discordância: ceifeira
cega a cortar restos de música.

Entanto, bem junto à casa onde Doroteia
bela adormeceu a carne, bem junto ao ouro
e à Matriz do Carmo, estreitamente
ligados à ideia e à causa, repousam
poeiras inconformadas.
Gonzaga que Marília não despiu
tombado em desconforto e vento.

Ouro Preto, amplo museu: sombras íntimas da cidade
(meu avô, meu tio, meu pai, Bernardo Guimarães)
deslizam nas pedras, palavras enleadas
– fogo negro, ouro-em-breu –,
restos de eternidade em crônicas enferrujadas.
Chovem heráldicas de poéticas amas na infância
que se esqueceu: nas mãos do sol sair da prisão,
hoje museu,
pois tudo o que é livre nunca se tranca,
alta primavera que jamais se estanca.