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ANDRÉA DEL FUEGO

VOLTAR A COMER O BISPO



Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente.
Economicamente. Filoso camente. Única lei do mundo.
Expressão mascarada de todos os individualismos,
de todos os coletivismos. De todas as religiões.
De todos os tratados de paz.
oswald de andrade - Revista de Antropofagia, maio de 1928


O orentino Américo Vespúcio a rmou ter assistido
a um ritual antropofágico em 1501 no Rio Grande
do Norte, a vítima era um europeu. O ritual se baseava
em comer a carne do prisioneiro não sem antes o inserir
na própria tribo como faziam os Tupinambás.
Outro viajante, Tommaso Garzoni, escreve que na mesma
tribo se comia os próprios parentes mortos, pois seria
o estômago do homem a sepultura mais honesta,
não os vermes. Em 1555, o primeiro bispo do Brasil teria
sido comido pelos índios caetés. O bispo não queria,
por exemplo, que os portugueses adquirissem o hábito
indígena de fumar. O clérigo foi devidamente assado e servido.

Estamos em 2018 e nunca mais comemos um bispo.
Abandonamos a antropofagia, ao menos na área cultural.
Não me refiro à influência e à digestão artística já
facilitadas pelas redes, nem aos artistas, mas à certa
recepção da obra. Uma exposição é cancelada por abranger
obras da cultura Queer. Em outra ocasião, o artista
Wagner Schwartz fora ameaçado de morte porque sua
obra permitia ao púplico manipular seu corpo tal qual
a experiência com as dobradiças da série Bichos de Lygia Clark.
As reações obedeceram impulsos vitais, quem censura
pensa estar defendendo seus lhos e a sociedade do mal.
Esse público não quer comer o bispo, quer torná-lo imortal,
para sempre entre nós os mesmos colonizadores da percepção.
O que a arte atinge tem relação com a obra e muito com
o repertório sensível do espectador. É também para alargar
esse repertório que as exposições se deixam ver.
Se a diferença intolerável aparece numa obra, damos um salto.
Mas a recepção da obra, por parte de quem abana o bispo,
não tolera outra coisa que não a certeza da propaganda
de creme dental. Ele con rma que Colgate existe, sempre
teve em casa, a constância sustenta sua segurança.
O que defendemos na arte é justamente sua pesquisa
pela validade desta sustentação. Setores míopes,
os mesmos que atrasam o país, pressentem que
a cultura é uma atividade que escapa do colo do bispo
e dá conta do que a História, a notícia e o veredito
do juiz nunca deram, nem darão. Uma mina de água
importante que não podemos deixar cimentar,
ainda que desta água muitos não bebam.

Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente.
Economicamente. Filoso camente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada
de todos os individualismos,
de todos os coletivismos.
De todas as religiões.
De todos os tratados de paz.